Bola de Capotão

15 de jul. de 2008

Bola de Capotão

Por Manezinho da Escrita

FINAL

Cheio de glória mesmo foi o dia em que alguns dos jogadores do time principal da cidade treinaram conosco. Para eles, certamente, uma brincadeira e sequer poderiam imaginar que, passados cinqüenta anos e aquela tarde estaria viva em meu imaginário como se tivesse ocorrido ontem.

Eram dois deles, e dos melhores. Aqueles a quem assistia admirado nas tardes de domingo nos campeonatos oficiais. A quem observava paramentando-se nos vestiários, local ao qual tinha acesso por conta do “tubarão”. O inesquecível odor de éter e pomada de cânfora, usada as tantadas pelo massagista preparando os atletas para a partida; e as ataduras apertadas aos tornozelos antes dos meiões; e as chuteiras de 10 ou 12 cravos e seu som inconfundível no piso duro do vestiário e, finalmente, a camisa de listas tricolores verticais com o escudo no lado esquerdo do peito. Mundo fantástico aos olhos de uma criança que se imaginava um deles ao entrarem em campo, saudados como heróis de um pequeno vilarejo.

Mas neste dia treinariam conosco: Mi, vigoroso zagueiro-central com um chute poderoso em sua perna direita e, Toninho Mancini, o “nosso camisa 10”, habilidoso coordenador de meio campo e que chegava ao gol com rara eficiência. Meio rechonchudo, mas grande jogador, meu ídolo e de toda a turma.

Mal podia acreditar, eu entre eles, por força de minha bola de capotão, não importa, precisava de garantias, mas valia tudo para ali estar. Tirado o par-ou-ímpar, hoje pelas visitas ilustres, os times foram montados. Fui o penúltimo a ser escolhido, meu amigo Zé Ito fechou a fila. Definidos os com-camisas e sem-camisas, quem ataca para onde, e tudo estava pronto. Nunca havia juiz em nossas peladas e as decisões sobre faltas ou o que quer que fosse, eram tomadas por consenso, rapidamente e sem brigas. Vez por outra, até desculpas por parte do infrator eram ouvidas. E a peleja teve início, amistosa para alguns, das mais importantes para outros, a da vida para mim.

A certa altura, Landinho recebe belo passe de Mi, levanta a cabeça já na entrada da grande área, canto direito e toca de primeira para alguém bem posicionado dentro da pequena área, pela esquerda, livre com a saída do goleiro para diminuir o ângulo pela direita. Passe no pé, açucarado, para quem? Eu mesmo, euzinho. Lá estava, na esquerda do ataque, em ótima posição e não por acaso, tampouco para fugir da jogada que se fazia toda pela direita, mas porque ali me coloquei por puro “instinto de goleador!?”

Ficou só no instinto. A grossura falou mais alto. O arremate matador não saiu, travei, não acreditei que pudesse estar acontecendo. As pernas endureceram, os pés transformaram-se em duas pesadas e desengonçadas bigornas imprestáveis. O goleiro Peixito já fechava meu ângulo para a finalização que nunca se fez e Toninho Mancini tomou-me a bola como quem rouba pirulito de criança. Nada elogiosos foram os impropérios que ouvi, revoltados, irados com tal demonstração de falta de talento. Fiquei arrasado. Compadeceu-se de mim apenas minha bola de capotão, meu Wilson companheiro único de um fragoroso naufrágio. Mas continuei. Algo de bom teria que me estar reservado naquela tarde tão especial, ou desistiria para sempre.

O jogo prosseguiu acirrado, com todos querendo se dar bem, como se a presença do pessoal do time de cima fizesse parte de sondagens para a seleção brasileira. Eu não aspirava nada disso, queria mesmo é livrar minha cara do vexame horroroso que havia aprontado. De repente, uma oportunidade: bola espirrada, que passe não recebia mais, sobra a meio caminho entre mim e, meu Deus!, Toninho Mancini, ele, novamente! Parti para a bola, ele também. Corri o máximo que minhas pernas permitiam, coração ainda mais acelerado, e chegamos juntos. Choque desigual. Toninho, com muita habilidade, prende a bola entre seu calcanhar esquerdo e o pé direito, joga ambas as pernas em movimento rápido por detrás do corpo e, resultado, a bola sobe o suficiente para passar ligeiramente acima de minha cabeça. Eu, no embalo que vinha, fui. Passei batido como touro no pano e a única coisa que vi foi o riso malicioso e zombeteiro de alguns. Ainda, na tentativa extrema de salvar-me de mais um vexame, tentei frear, voltar e tomar a pelota. Quem já jogou bola alguma vez na vida sabe que seria impossível, e foi. Apenas consegui escorregar e pranchar no chão feito uma abóbora. Pronto, estava feito; uma nova vergonha para o meu já extenso currículo. Como no anterior, continuei; como sempre, para desgosto de meus companheiros.

A tarde já descia e meu tempo para resgates ia ficando menor. Eu corria, esgoelava pedindo em vão um passe, uma bola boa, uma assistência. Ameacei levar a bola embora, jurei vingança, apelei para tudo que me veio à mente e, nada. Só por Deus. Era apenas um Aedes em campo, incomodava menos que mosca de banana.

A partida estava empatada, o meu “jogo da vida” estava igual em três gols para cada lado e tudo parecia irremediavelmente perdido. Mas então, um contra-ataque: espetacular defesa de nosso goleiro, bola rebatida e Mi a retoma. Livra-se de Zé Pindoba e procura alguém para passar, prende um pouco a jogada, olha novamente e descrente e sem alternativa, passa-me a bola no grande círculo. Ela vem em minha direção, rasteira e esperta e não há tempo para pensar no que fazer, eu era só instinto. Deixei a bola passar rente a meu pé esquerdo e, sem tocá-la, girei o corpo em 180 graus para partir rumo ao gol, sempre em movimento e sem perder seu domínio. Fiz a volta certinha e, quando levanto o olhar, vejo um gigante correndo em minha direção. Era Toninho Mancini se interpondo, novamente, bem à frente e em velocidade, e crescendo. E aí, pintou o craque: com a ponta de meu pé direito, desviei com sutileza a trajetória da bola, que passou rente por seu lado esquerdo, enquanto eu contornava pela sua direita e retomava a bola bem às suas costas. Ele, tomado de surpresa com a rapidez com que tudo aconteceu, sem acreditar que havia tomado o drible-da-vaca, parou e voltou-se ainda a tempo de me ver fazer precioso passe ao Pelé que se deslocava velozmente pela direita. Recebeu e, também rápido, tocou para Calango, já na área e de primeira, vencer Peixito e desempatar o jogo. E foi a glória, e foi a minha glória.

Enquanto todos festejavam, alguém me deu um carinhoso cascudo pelas costas, me virei, olhei e Toninho, meu ídolo, com um sorriso no rosto disse-me: “bela jogada, garoto”.

O jogo terminou e nós vencemos.

Apanhei minha bola, a coloquei sob o braço e caminhei para casa. Uma longa sombra de meu corpo que o sol, já bem baixo no horizonte, fazia projetar bem a minha frente, deu-me a dimensão de como me sentia naquele instante, naquele caminho tantas e tantas vezes trilhado. Era a fantasia do menino o transformando momentaneamente e para sempre num grande craque, tão grande quanto a sombra que o acompanhava. Levantei o braço em aceno a mim mesmo e a mágica tornou-se ainda maior, em fundo avermelhado cortado pelas demarcações brancas do campo de futebol. Quiquei minha bola no chão uma vez, outra e outra mais e a retomei ao braço. O som que ouvi de meu capotão era pura música aos meus ouvidos, era o alarido enlouquecido da galera, saudando minha saída.

Fui tirado de meu quase transe por minha mãe, recomendando que pusesse a roupa que usava no cesto de roupas sujas. Assim o fiz e ao mesmo tempo em que a água do chuveiro limpava meu corpo suarento, a alma já lavada colocava em meu cesto de memórias, no espaço reservado ao futebol, minha grande paixão de criança, a mais pura e definitiva lembrança, tão viva hoje como se hoje tivesse ocorrido.

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito. Diferente.
Manezinho fica devendo outras.

Anônimo disse...

Isto acontece ainda hoje, e muito.
Este nosso Brasil é grande e a molecada continua correndo e pensando na glória.
Parabéns pra turma do Clube.

Anônimo disse...

Cara, este moleque é um barato.
Me fez viajar.
Nunca tinha lido coisa assim comprida. Foi bom.